quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Até então

Até então, um dia normal. Acordei tarde, não conseguia abrir os olhos, não conseguia fazer nada, até que tomei duas xícaras de café. Entre uma xícara e outra, decidi massacrar a sonolência e optar pela vida. Muito quente na rua, daqueles dias que não se pode pisar fora de casa sem sentir uma preguiça morna que arde a testa e contrai as pálpebras. Decidi tomar um banho bem gelado. Botei vestido – porque nesses dias, não dá nem pra imaginar estar de calça –, e então fui com minha mãe almoçar em um restaurante perto. Até comentei o quanto achava arriscado andar de vestido em Osório, já que tem muito vento, e eu, descuidada, acabava por mostrar minhas perninhas e bordas de calcinha por aí. Na volta pra casa, o calor continuou molhando meu corpo e secando meu cérebro.
Sentei no sofá, e tomando café , arpejei algumas músicas no violão. Até que a mãe se despediu, dizendo que estava na hora de ir pro trabalho, e que eu ficasse bem.
Consumidos - pelo relógio ao modelo rodoviária que está na lareira – ao menos dez minutos, o celular toca, e num desespero, a mãe pede para que eu recolha i-m-e-d-i- a-t-a-m-e-n-t- e a roupa que secava na rua, porque chegava um ciclone em Osório. Ao desligar, atirei o celular em qualquer lugar, chequei se a gata estava bem, e me encaminhei apressadamente para a parte de trás do terreno. Recolhi as roupas, e as despejei em uma poltrona da sala. Resolvi conferir a peça de trás. Já no lado de fora, um lúcido caminhozinho de perfeitos quadrados de alguma pedra cinza cortava o gramado ligando casa e peça. Dirigi-me então, para lá (portas e janelas de vidro. Dentro, churrasqueira, mesa, cadeiras e fogão). As portas estavam fechadas e tremiam como se fossem regurgitar uma enorme e pegajosa bola de pêlo. Continuei assistindo, até que pesadas e velozes gotas de chuva começaram a esfaquear-me em todas as direções. Quando já me voltava para o interior da casa, vi uma cena monstruosamente inesperada: aquelas portas de trás abriram-se furiosamente com o vento ainda mais furioso. Sim, elas estavam trancadas à chave. Havia um incrível mecanismo em que uma barrinha de ferro entrava no chão trancando-a, e na parte de cima, outra entrava no teto. Mas elas estavam trancadas apenas na maçaneta. Corri para tentar fechar aquelas desgraças, e a ventania me carregava para todos os lados.

Enquanto eu puxava uma porta para tentar fechar o milagroso pino de baixo, a outra vinha com força contra minhas costas, ou contra a parede, fazendo um estrondoso barulho. Pensei que a porta poderia quebrar-se a qualquer momento se eu não conseguisse cumprir minha desesperada tarefa. Eu apanhava de portas, ventos e chuva. E então recordei de um filme em preto e branco que se passa na noite da revolta estudantil de 1968 em Paris, onde grande parte dos estudantes vira carros de lado, para abrigar-se das tropas militares, e de lá, só conseguem enxergar fumaça de bombas e a imensa escuridão noturna. Provavelmente eu tenha lembrado isso quando percebi que meus óculos estavam embaçados e cobertos de gotas d’água.
Tendo em mente que as portas tinham sido estupradas pelo mau-tempo, rodar a chave somente na maçaneta não adiantaria. Então me agachei, na tentativa de fechar os pinos de baixo. A tempestade continuava irritadíssima. Meu vestido levantava bruscamente. Novamente, fui assediada por pensamentos inoportunos. Dessa vez, me vi cantando Gloria Gaynor no meio da chuva e da ventania. Obviamente, imaginava o glamoroso single “I Will survive” em meio a luzes coloridas, fumaças, lantejoulas e plumas rosas. Tudo voava na direção que o vento quisesse (provavelmente um vento daquele dirigir-se-ia para algum lugar semelhante ao inferno).

As bordas, costuras e tecidos, da minha calcinha já estavam completamente à mostra, e os cabelos me chicoteavam o rosto. E aquele vidro me derrubando com força. E o pino não funcionando. E a ventania, e o céu negro, e o uma tampa de qualquer coisa voando – devia ser da vizinha, coitada. Mas de qual delas? E que tampinha tenebrosa, o que será que permite ser tampado com isso? – e a chuva forte e gorda. Meus pés num chinelo escorregadio. Uma tormenta. O dia certamente estava insatisfeito com alguma coisa.

4 comentários:

  1. momentos dramáticos, momento engraçadíssimos! como tu consegue? comédia, comédia a 'botinha'!

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  2. hahaha
    eu participei desse momento, mesmo que a distância, cheguei a receber a mp3 de I Will Survive... heheh
    vestido? oin que coisa fofa, nunca te vi a não ser com calças.
    adorei!

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  3. Terminado o texto, tenho no rosto a expressão reverente de quem termina de apreciar uma obra-prima! E corrijo-me o coração para prosseguir na luta resolvida por essa capacidade expressiva - meio exata se bem que toda metafórica e polissêmica! - que tu já demonstra, e que constitui, na verdade, a única forma de ser sincero, de comunicar algo.
    Adorei teus poemas também.

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