Até então, um dia normal. Acordei tarde, não conseguia abrir os olhos, não conseguia fazer nada, até que tomei duas xícaras de café. Entre uma xícara e outra, decidi massacrar a sonolência e optar pela vida. Muito quente na rua, daqueles dias que não se pode pisar fora de casa sem sentir uma preguiça morna que arde a testa e contrai as pálpebras. Decidi tomar um banho bem gelado. Botei vestido – porque nesses dias, não dá nem pra imaginar estar de calça –, e então fui com minha mãe almoçar em um restaurante perto. Até comentei o quanto achava arriscado andar de vestido em Osório, já que tem muito vento, e eu, descuidada, acabava por mostrar minhas perninhas e bordas de calcinha por aí. Na volta pra casa, o calor continuou molhando meu corpo e secando meu cérebro.
Sentei no sofá, e tomando café , arpejei algumas músicas no violão. Até que a mãe se despediu, dizendo que estava na hora de ir pro trabalho, e que eu ficasse bem.
Consumidos - pelo relógio ao modelo rodoviária que está na lareira – ao menos dez minutos, o celular toca, e num desespero, a mãe pede para que eu recolha i-m-e-d-i- a-t-a-m-e-n-t- e a roupa que secava na rua, porque chegava um ciclone em Osório. Ao desligar, atirei o celular em qualquer lugar, chequei se a gata estava bem, e me encaminhei apressadamente para a parte de trás do terreno. Recolhi as roupas, e as despejei em uma poltrona da sala. Resolvi conferir a peça de trás. Já no lado de fora, um lúcido caminhozinho de perfeitos quadrados de alguma pedra cinza cortava o gramado ligando casa e peça. Dirigi-me então, para lá (portas e janelas de vidro. Dentro, churrasqueira, mesa, cadeiras e fogão). As portas estavam fechadas e tremiam como se fossem regurgitar uma enorme e pegajosa bola de pêlo. Continuei assistindo, até que pesadas e velozes gotas de chuva começaram a esfaquear-me em todas as direções. Quando já me voltava para o interior da casa, vi uma cena monstruosamente inesperada: aquelas portas de trás abriram-se furiosamente com o vento ainda mais furioso. Sim, elas estavam trancadas à chave. Havia um incrível mecanismo em que uma barrinha de ferro entrava no chão trancando-a, e na parte de cima, outra entrava no teto. Mas elas estavam trancadas apenas na maçaneta. Corri para tentar fechar aquelas desgraças, e a ventania me carregava para todos os lados.
Enquanto eu puxava uma porta para tentar fechar o milagroso pino de baixo, a outra vinha com força contra minhas costas, ou contra a parede, fazendo um estrondoso barulho. Pensei que a porta poderia quebrar-se a qualquer momento se eu não conseguisse cumprir minha desesperada tarefa. Eu apanhava de portas, ventos e chuva. E então recordei de um filme em preto e branco que se passa na noite da revolta estudantil de 1968 em Paris, onde grande parte dos estudantes vira carros de lado, para abrigar-se das tropas militares, e de lá, só conseguem enxergar fumaça de bombas e a imensa escuridão noturna. Provavelmente eu tenha lembrado isso quando percebi que meus óculos estavam embaçados e cobertos de gotas d’água.
Tendo em mente que as portas tinham sido estupradas pelo mau-tempo, rodar a chave somente na maçaneta não adiantaria. Então me agachei, na tentativa de fechar os pinos de baixo. A tempestade continuava irritadíssima. Meu vestido levantava bruscamente. Novamente, fui assediada por pensamentos inoportunos. Dessa vez, me vi cantando Gloria Gaynor no meio da chuva e da ventania. Obviamente, imaginava o glamoroso single “I Will survive” em meio a luzes coloridas, fumaças, lantejoulas e plumas rosas. Tudo voava na direção que o vento quisesse (provavelmente um vento daquele dirigir-se-ia para algum lugar semelhante ao inferno).
As bordas, costuras e tecidos, da minha calcinha já estavam completamente à mostra, e os cabelos me chicoteavam o rosto. E aquele vidro me derrubando com força. E o pino não funcionando. E a ventania, e o céu negro, e o uma tampa de qualquer coisa voando – devia ser da vizinha, coitada. Mas de qual delas? E que tampinha tenebrosa, o que será que permite ser tampado com isso? – e a chuva forte e gorda. Meus pés num chinelo escorregadio. Uma tormenta. O dia certamente estava insatisfeito com alguma coisa.